RICARDO E MARTA NA OBRA DE MÁRIO SÁ CARNEIRO
Mesmo os leitores mais experientes que acreditam ter clareza na distinção de ficção e vida real se pegam algumas vezes chorando diante da morte de um personagem, o que torna evidente que o não distanciamento entre leitor/texto, confirmando que diante do leitor não se encontra apenas “papel pintado com tinta” e por que não há representação da realidade?
Ao se discutir a questão personagem é preciso evidenciar alguns aspectos fundamentais como: a personagem não existe fora das palavras e as personagens representam pessoas de acordo com as modalidades da própria ficção. A partir disso é que podemos “vasculhar a existência da personagem enquanto representação de uma realidade exterior ao texto” 1. Enquanto isso o personagem é uma habitante da realidade ficcional do qual é diferente do espaço habitado por seres humanos, mas que possui um relacionamento estreito, o que justificaria talvez a emoção de leitores diante de um texto, Brait faz uma colocação a respeito:
"Nesse jogo, em que muitas vezes tomamos por realidade o que é apenas a linguagem (e há quem afirme que a linguagem e a vida são a mesma coisa), a personagem não encontra espaço na dicotomia ser reproduzido/ser inventado. Ela percorre as dobras e o viés dessa relação e aí situa a sua existência." 2
Antônio Candido coloca que a dificuldade de abordar o fenômeno da ficção sem recorrer a valorizações estéticas indica que este problema é o do nível estético, como por exemplo, a ficção de baixo nível estético, “de grande pobreza imaginativa” com personagens sem vida e situações sem significado profundo.
Segundo Antônio Candido:
"A criação de um vigoroso mundo imaginário, de personagens ‘vivas’ e situação ‘verdadeira’, já em si de alto valor estético, exigem geral a mobilização de todos os recursos da língua, assim como de muito outros elementos da composição literária." 3
Assim, podemos dizer que um personagem se torna desprezível quando não possui em torno de si características que a tornem verossimilhante a partir de recursos estilísticos utilizados pelo autor.
Mário de Sá Carneiro nasceu em Lisboa, em 1890. Em 1912 seguiu para Paris, intentando cursar Direito. Nesse mesmo ano publicou Princípios e iniciou sua produção poética, posteriormente juntou-se ao grupo que lançou Orpheu, em 1915. Nesse mesmo ano publica Dispersão e A Confissão de Lúcio. Retornou a Paris, onde sérios problemas financeiros o levaram à depressão e finalmente ao suicídio, em abril de 1916. Dedicou-se à prosa, à poesia e ao teatro. Os seus personagens são geralmente voltados para si mesmos, com a personalidade em desagregação, buscando um outro no seu próprio interior que viesse a completá-los.
Na obra de Mário de Sá-Carneiro A Confissão de Lúcio, o personagem Ricardo de Loureiro é posto como o protagonista dos fatos narrados por Lúcio Vaz. A trama da novela envolve um triângulo amoroso formado por Lúcio, Ricardo e Marta, em que Marta aparece na obra como uma extensão entre Ricardo e Lúcio.
Antes de conhecer Lúcio, Ricardo é mencionado por Gervázio Vila-Nova: “Ricardo de Loureiro, o poeta das Brasas...” 4 .
A princípio quando os dois, o poeta e o escritor, são apresentados, Lúcio narra às primeiras impressões a respeito de Ricardo caracterizando o personagem na obra:
"... ao primeiro contato, experimentei uma viva simpatia com Ricardo de Loureiro. Adivinhava-se naquele rosto árabe de traços decisivos, bem vincados, uma natureza franca, aberta – luminosa por uns olhos geniais, intensamente negros." 5.
Em outro momento, Lúcio comenta a incoerente fisionomia de Ricardo e a insatisfação com o corpo:
"Ainda hoje ignoro se o meu amigo era formoso. Todo de incoerências, também a sua fisionomia era um incoerência: Por vezes o seu rosto esguio, macerado –se o víamos de frente, parecia-nos radioso. Mas de perfil já não sucedia o mesmo... Contudo, nem sempre: o seu perfil, por vezes, também era agradável... sob certas luzes... em certos espelhos... Entretanto, o que mais o prejudicava era sem dúvida o seu corpo que ele desprezava, deixando-o ‘cair de si’..." 6
Com o desenvolvimento de uma grande amizade e admiração entre ambos, Ricardo de Loureiro começa dividir suas angústias em vastas confidências. Entre elas sua principal incoerência: a de sentir-se atraído pela vida ao mesmo tempo em que se sente totalmente estranho a ela:
"Quero tanto ao progresso, à civilização, ao movimento citadino, à atividade febril contemporânea! ’ Porque, no fundo, eu amo muito a vida. Sou todo de incoerências. Vivo desolado, abatido, parado de energia, e admiro a vida, entanto como nunca ninguém a admirou!" 7
A problemática com o corpo e a beleza física aparecem constantemente em suas confidências, em que Ricardo parece ter a necessidade de adaptar-se as formas estéticas, desejando até ser mulher para ser belo:
"– Ah! Como eu me trocaria pela mulher linda que ali vai... Ser belo! Ser belo!... ir na vida fulvamente... ser pajem na vida... Haverá triunfo mais alto?" 8.
"E lembrar-me então um desejo perdido de ser mulher – ao menos, para isto: para que, num encantamento, pudesse olhar as minhas pernas nuas, muito brancas, a escoarem-se, frias, sob um lençol de linho...' 9.
E confessa com um tom de homossexualismo:
"Para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale a amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou mulher ou homem. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo." 10.
Ainda em tom confessional, admite o desejo de beijar a mãe, por sentir por ela “tanta ternura”, ternura essa que para Ricardo equivale a amizade, como forma de estreitar as relações:
"Em certos momentos chego a ter nojo de mim. Escute. Isto é horrível! Em face de todas as pessoas que eu sei que deveria estimar – em face de todas as pessoas por quem adivinho ternuras – assalta-me sempre um desejo violento de as morder na boca! Quantas vezes não retraí a ânsia de beijar os lábios de minha mãe..." 11 .
Em A Confissão de Lúcio, Ricardo aparenta ser a representação de Dandi, personagem recorrente na Literatura Decadentista, em que seria um homem caracterizado por certo requinte em seu estilo de vida, pois Ricardo não vive de seus poemas e possui um veículo, este que para o período em que se passa a narrativa era algo novo em face da revolução industrial:
"Era um estudante distinto, e nunca me antevisionava com meu curso concluído. Efetivamente um belo dia, de súbito, sem razão, deixei a universidade. Fugi para Paris... Dentro da vida prática também nunca me figurei. Até hoje, aos vinte e sete anos, não consegui ainda ganhar dinheiro pelo meu trabalho. Felizmente não preciso..." 12.
Ricardo regressa a Portugal, agora casado, o narrador/personagem Lúcio chama a atenção para a mudança em seu aspecto físico:
"As suas feições bruscas haviam-se amenizado, acetinado – feminilizado, eis a verdade – e, detalhe que mais me impressionou, a cor dos seus cabelos esbatera-se também (...) E o tom da sua voz alterara-se identicamente, e os seus gestos: todo ele, enfim, se esbatera." 13 .
Essa mudança é decorrente de uma figura feminina que surge em meio à “uma sala escura, pesada”14, Marta, “esposa de Ricardo”.
Primeiramente ela é caracterizada pelo narrador/personagem Lúcio como uma mulher belíssima:
"Era uma linda mulher loira, muito loira, alta escultural – e a carne mordorada, dura, fugitiva. O seu olhar azul perdia-se de infinito, nostalgicamente. Tinha gestos nimbados e caminhava nuns passos leves, silenciosos – indecisos, mas rápidos. Um rosto formosíssimo, de uma beleza vigorosa, talhado em ouro. Mãos inquietantes de esguias e pálidas. Sempre triste – numa tristeza maceradamente vaga – mas tão gentil, tão suave e amorável, que era sem dúvida a companheira propícia, ideal, de um poeta..." 15
No entanto, na obra, Marta representa a face feminina de Ricardo, ou seja, uma projeção do eu de Ricardo, em que no decorrer da narrativa o narrador mostra “pistas” ao leitor que põe em dúvida sua existência material. A primeira delas é que Marta é sempre associada à figura de Ricardo:
"Marta misturava-se por vezes nas nossas discurssões, e evidenciava-se de larga cultura, de uma finíssima inteligência. Curioso que a sua maneira d pensar nunca divergia da do poeta. Ao contrário, integrava-se sempre com a dele reforçando, aumentando em pequenos detalhes as suas teorias, as suas opiniões." 16 .
"As suas feições escapavam-me como nos fogem as das personagens dos sonhos. E, às vezes, querendo-as recordar por força, as únicas que conseguia suscitar em imagem eram as de Ricardo de Loureiro." 17
Em outra passagem o narrador Lúcio sente perturbado com o beijo de Marta pela tamanha semelhança ao beijo de Ricardo:
"O beijo de Ricardo fora igual, exatamente igual, tivera a mesma cor, a mesma perturbação que os beijos da minha amante. Eu sentira-o da mesma maneira." 18
O passado de Marta desperta a curiosidade de Lúcio, pois “essa mulher não tinha recordações”19, e Ricardo nunca mencionou com detalhes seu enlace amoroso:
"Mas seriam eles casados?... Nem sequer disso eu podia estar seguro.Lembrava-me numa reminiscência vaga: na sua carta o meu amigo não me escrevera propriamente que tinha se casado. "20
"E só então me lembrei distintamente da carta do poeta pela qual se me afigurava ter sabido do seu enlace: a verdade era que, de forma alguma, ele me participava um casamento nessa carta, nem sequer de longe aludia a esse ato – falava-me apenas das ‘transformações da sua vida’, do seu lar, e tinha frases como esta que me bailava em letras de fogo diante dos olhos: ‘agora, que vive alguém ao meu lado; que enfim de tudo quanto derroquei sempre se ergueu alguma coisa..." 21
Outro importante fato que põe em dúvida a existência material de Marta é o seu constante desaparecimento:
"E então pouco a pouco, à medida que a música aumentava de maravilha, eu – vi – sim, na realidade vi! – a figura de Marta dissipar-se, esbater-se, som a som, lentamente, até que desapareceu por completo. Em face dos meus olhos abismados eu só tinha agora o ‘fauteuil’ vazio..." 22.
Para Lúcio, Marta parecia uma mulher imprecisa, volátil, que foge, desaparece, evade-se pelos cantos da sala, e que em seus encontros deixa somente o “perfume penetrante” em seu leito.
Na narrativa, Marta é criada por Ricardo para possuir o outro, Lúcio, como uma espécie de ponte de ligação para a realização amorosa não só entre os dois como também aos outros amantes de Ricardo por quem teve afetos e admiração.
"Criei-A!... (...) Marta é como se fora a minha própria alma. Pensamos da mesma maneira; igualmente sentimos. Somos nós dois... (...) foi como se a minha alma, sendo sexualizada, se tivesse materializado. E só com o espírito te possuí materialmente! "23
Marta é criada pela mente de Ricardo como um delírio ou desejo de Ricardo e Lúcio de possuir um ao outro espiritual e fisicamente. E ao final da obra, após Ricardo explicar a Lúcio que criou Marta para possuí-lo, entende que a mesma é a causa da separação entre os dois, Ricardo entra desnorteado em casa, em uma passagem alucinante da narrativa:
"Em pé, ao fundo da casa, diante de uma janela, Marta folheava um livro... A desventurada mal teve tempo para se voltar...Ricardo puxou de um revólver que trazia escondido no bolso do casaco e, antes que eu pudesse esboçar um gesto, fazer um movimento, desfechou-lho à queima roupa..Marta tombou inanimada no solo... Eu não arredara pé do limiar...E então foi o mistério... o fantástico mistério da minha vida... ó assombro! ó quebranto! Quem jazia estiraçado junto da janela, não era Marta – não! – era o meu amigo, era Ricardo... E ao meus pés – sim, aos meus pés! – caíra o seu revólver ainda fumegante!...Marta, essa desaparecera, evolara-se em silêncio, como se extinge uma chama...!" 24
Segundo a interpretação de Aparecido Rossi:
"Ricardo matara a si mesmo quando atirou em Marta. Isso até poderia lembrar-nos, recorrendo a uma liberdade de interpretação, do mito de Narciso: Narciso, ao tentar abraçar o seu próprio reflexo no lago, acaba caindo neste e afogando-se. É mais ou menos o que ocorre aqui, logicamente que de outra forma e em uma circunstância totalmente adversa: Ricardo (Narciso) matou Marta, seu próprio reflexo transmutado em mulher (o reflexo no lago), portanto, matou a si mesmo. Fazendo uma analogia com o mito de Narciso, que ao tentar abraçar seu reflexo no lago, acaba morrendo afogado, porém não na mesma circunstância, Ricardo matou o seu próprio reflexo transmutado em mulher, Marta, portanto matou a si mesmo." 25
Então, para o narrador/personagem Lúcio, quem cai ao seu lado não é Ricardo, e sim o revólver que Ricardo portava. E diante da janela, Ricardo.
Assim, Marta condensa-se no além, o que lhe dá o caráter de imaterialidade dentro da narrativa.
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1 BRAIT, B. “A Personagem”. São Paulo: Editora Ática, 2002, p.11.
2 Ibid., p.12.
3 CÂNDIDO, A. “A personagem de ficção”. Editora Perspectiva, p.37.
4 CARNEIRO, M. S., A Confissão de Lúcio. p.05.
5 Ibid., p.09.
6 Ibid., p.23.
7 Ibid., p.09.
8 Ibid., p.22.
9 Ibid., p.23.
10 Ibid., p.24.
11 Ibid., p.24.
12 Ibid., p.15-16.
13 Ibid., p.25.
14 Ibid., p.26.
15 Ibid., p.26.
16 Ibid., p.27.
17 Ibid., p.37.
18 Ibid., p.39.
19 Ibid., p.28.
20 Ibid., p.28.
21 Ibid., p.32.
22 Ibid., p.30.
23 Ibid., p.54.
24 Ibid., p.55.
25 Rossi, Aparecido Donizete. Ensaios:Mário de Sá-Carneiro: Poeta da Desilusão. Usina de Letras, 02 Set. 2001.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A novela A Confissão de Lúcio de Mário de Sá Carneiro é uma obra muito rica de interpretações e analises devido à linguagem metafórica e sugestiva proporcionando o caráter de mistério que envolve a narrativa.
A obra nos possibilitou a reflexão a cerca dos personagens Ricardo e Marta não só por conta da obra, mas pelo subsídio teórico a respeito de um dos elementos da narrativa, o personagem, que é abordado pelos autores Beth Brait e Antônio Cândido.
Após a analise pode-se concluir que Marta nada mais é que o próprio Ricardo, ou seja, um desdobramento de Ricardo, como forma de possuir o outro, no caso Lúcio, em que a figura de Marta sempre se apresenta semelhante à figura de Ricardo. Por isso, Marta aparece na obra imaterializada, causando o questionamento do narrador Lúcio.
É importante ressaltar que na obra o narrador não deixa claro a existência ou não de Marta, e é esse o mistério que envolve a narrativa.
BIBLIOGRAFIA
BRAIT, Beth. “A Personagem”. São Paulo: Editora Ática, 2002.
CÂNDIDO, Antônio, “A personagem de ficção”. Editora Perspectiva.
CARNEIRO, Mário de Sá, A Confissão de Lúcio. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16999 > Acesso em: 09 Fev. 2007.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa através dos textos. 9ªed.,São Paulo: Cultrix,1980.
ROSSI, Aparecido Donizete. Ensaios-->Mário de Sá-Carneiro: Poeta da Desilusão .Usina de Letras,02 Set. 2001. Disponível em:
<http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=906&cat=Ensaios&vinda=S> Acesso em: 09 Fev. 2007.
SARAIVA, José Antônio. História da Literatura Portuguesa. São Paulo: Porto Editora.

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